segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Sobre Sade

  A época de Marquês de Sade é uma fase da história da humanidade de constantes reviravoltas: sociais, políticas, dos costumes, da ética, da religião… e da relação íntima dos indivíduos europeus consigo próprios. Sua autoimagem. Sade é o rosto que perdurou até os dias de hoje de um tipo de indivíduo frequente em sua época, meados do século XVII e XVIII. Sua literatura representa uma forma de vida, de arte e filosofia em certa medida arrebatadoras, revolucionárias, até mesmo perturbadoras vistas sob a ótica da moral conservadora, vigente em toda a Europa por tantos séculos. Não à toa foi um dos maiores protagonistas no palco da Revolução Francesa: uma das grandes tentativas da humanidade europeia em superar de uma vez por todas todos os medos que a fizeram escrava e impotente. A crença em deuses carrascos e a consequente tirania dos governantes, a vontade de domínio a todo custo, enfim: políticas escravizantes.
   Sade incentiva seus leitores à destruição completa dos pudores, nos demonstra sua falsidade: toda narrativa religiosa, punições divinas, infernos eternos, felicidade e paz eternas, não passam todas elas de contos de fadas criados para paralisar de medo aqueles que neles acreditam, superstições – todas elas têm unicamente o objetivo de limitar, castrar, escravizar a imaginação, a espontaneidade humana, ou melhor, a intenção com que elas são utilizadas no âmbito social. A fonte inesgotável de vida e criatividade humanas. E essa é, certamente, a base de toda a formação da sociedade em que Sade se situa.
    Toda essa tirania social, que inclusive é a geradora de todo tipo de distúrbios – essa moral que sem mais delongas decide o que é o certo e o que é errado – estabeleceu o principal alvo de todo o seu asco no sexo. É o sexo, também, o principal ponto de partida da “desconstrução” engendrada pela literatura sadiana: o que ele mais quer em seus escritos é nos demonstrar como é, especialmente, por uma falta de ação, por paralisia mesmo, que todas as leis mais sagradas são erigidas. Uma vontade de inação, de não-movimento: o que contradiz toda a experiência do mundo, da vida, enfim. Essa inação é a causa e é o efeito dessas formas de vida, dessa alienação para com o corpo; dessa não revisitação dos preconceitos, dos “mandamentos”, das leis que regem a existência.
   Toda autoridade é ela mesma uma grande fraqueza: ao menos a autoritária, castradora, ignorante da complexidade da vida. É ela própria uma falta de vontade em entender, compreender, experimentar. O Estado (ou Deus) é a condensação de todo um imaginário que “está” na consciência dos indivíduos, é carregado por eles, alimentado por eles: e representa uma forma de vida que não efetiva e não quer efetivar a si própria. Deus é carrasco, e não ama sua criatura até que ela não mais seja aquilo que ela está destinada a ser. Deus não ama: pune. 99% dos casos. Estar em condição de subjugação a essa força tirana por certo é escravidão: e eterna.
   A crença na impossibilidade do perdão de Deus mas que ainda assim anseia por ele, a ânsia por Deus, por Verdade, gera uma tal paralisia nos corpos uma vez que não há sequer um ponto fixo em todo o universo que apenas isto já é todo o motivo suficiente para compreender os distúrbios, as loucuras, ou melhor, toda autoridade, toda imposição, toda violência, toda castração. Essa é a base do indivíduo moralmente correto, da família tradicional, do Estado indivíduos pela metade. Essa é a grande graça de A Filosofia na Alcova, seus personagens ensinam uma menina que mal começou a viver, e ainda não se viu infectada pelo asco logo cedo ofertado pelo ninho familiar à vida, à sua arbitrariedade, ao seu acaso, seu caos.
   É a descoberta do próprio corpo: é a descoberta do corpo. As lições aprendidas na alcova são a possibilidade de mudar a direção dos caminhos perverter os caminhos que estão começando aos poucos a ganhar força na cabeça de Eugénie: a moralização, o ranço, a sensação de um desejo não cumprido, de uma vida vivida pela metade. A alienação de si, a parca compreensão de si e dos outros; o estranhamento. Todos nós temos pênis e vaginas, assim como temos olhos e mãos. Como é possível viver sem reconhecer-se por inteiro? Daí resultará um meio movimento, meio ser. E a pergunta: o que eu seria se tivesse sido?
   Podemos entender a soberania dos personagens sadianos quando usamos metáforas que nos aproximam mais de sua humanidade: movimento, afeto, calor, são expressões linguísticas que remetem a uma mesma intuição. Deixar ser é deixar florescer, deixar revigorar: fazer filosofia na alcova é como ascender acima das plantas daninhas, que se encontram na escuridão, em antros pouco arejados, e rastejam débeis à procura de um mínimo de ar e alimento. É ir direto ao sol, acima do topo das árvores, afastar tudo aquilo que impede essa saúde, através de um esforço constante de filosofia, amizade… e sexo. É antes de tudo um trabalho, um trabalho de amor.
   Sade põe-se numa posição de polêmica: ele se utiliza de palavras como perversão, maldade, sujeira, para dar uma alfinetada naqueles espíritos nos quais ainda se encontra asco moralista. Seus leitores veem antes a si próprios. Sade soa doentio àqueles que são, eles mesmos, doentios, por força de inércia. Inércia gerada pelas constantes proibições, imposições, culpabilizações, enfim. Mas pode vir a ser um grande remédio, uma nova consciência, um reacender de forças ocultas. Com uma simples leitura.
   Como já foi previsto com essa mera introdução, o filósofo Sade vê no estímulo do corpo nas milhões de formas de estimulá-lo um caminho fértil para se chegar à filosofia. É como se ele soubesse o quanto uma humanidade, por ausência de toque, está embotada em ideias. As ideias filosóficas elas mesmas têm cheiro de antro fechado, os corpos estão em estado de putrefação parcial por serem por tanto tempo ignorados, rechaçados, desdenhados pela religião, pelas ideias em vigor: ideias que querem solidez, querem pureza, querem eternidade. Mas nada no mundo é eterno: tudo corre como um rio, em movimento, tudo alterando, nada sendo o mesmo duas vezes.
   O filósofo da alcova quer incentivar seu leitor a rir de seus demônios. Ao menos quer ensinar seu aprendiz a conversar com eles, experimentá-los. Experimentá-los ao limite, em graus sempre maiores; indo cada vez mais a fundo, experienciando tudo o que, num contexto de opressão, não seria sequer cogitável. Imagine-se um vórtice: tal é o formato de um ânus. Tal é o movimento que Sade quer que façamos em meio às orgias com nossas ideias. Não há distinção entre o corpo e a mente: não há hierarquia antes, há uma hierarquia invertida. Tudo começa no corpo, no gozo, e se ramifica nos pensamentos, como frutos de uma árvore constantemente fertilizada.
   Tudo se transfigura em novas formas quando se tem a coragem, os colhões, para se fazer algo que até então se recriminou unicamente pela força do hábito, ou pelo medo, ou pela ignorância. À mente surgem novas impressões, risos: são máscaras que adotamos, personagens que encenamos. Somos autoritários quando sentimos que são conosco, o somos conosco mesmos: temos essa relação íntima de alienação, enquanto não há um incentivo como o de Saint-Ange e Dolmancé. Acreditamos haver algo a se recriminar em nós por sentirmos afetos que os outros recriminam: não nos vem à mente, ao menos em primeira instância, criticar essa recriminação mesma. Quando jovens demais acabamos crendo na solidez desses preconceitos, não os conectando com as possíveis frustrações e medos daqueles que as propagam: dessa ausência de posicionamento é que surgem todas as loucuras, miragens, sobre punições eternas, culpas que nunca acabam.
   Sade aprecia o deboche. Ele sabe que depois de um tempo um ser humano atormentado tem de decidir se permanecerá nessa situação de miséria ou retornará à superfície alegre e sempre confiante dos acontecimentos do mundo. Ele sabe, igualmente, que há um grande medo da sujeira, que toda moral é medo de se sujar, medo da mistura. Várias filosofias emergentes na época fizeram, também, uma tentativa de esclarecimento para com a mutabilidade dos fenômenos do mundo, Diderot com a sua visão musical sobre o corpo e o mundo, Condillac com seu sensualismo… entre outros. Todos em grande medida utilizando-se de linguagem científica; todos, também em grande medida, retomando conhecimentos antigos, como o hedonismo epicurista, o poema De Rerum Natura, de Lucrécio, sobre a natureza das coisas que introduz a noção de átomo, numa tentativa de explicar o mundo sem quaisquer superstições. Tudo com a intenção de criar movimento e extirpar os medos que tornam impossível a vida humana.
   A filosofia de Sade é uma explosão, pronta a ferir todo aquele que se mostrar ofendido. Uma explosão apenas: nem boa nem má, mas que por certo virá transformar tudo o que tocar. Matando ideias débeis matando os débeis , reflorescendo, revigorando aqueles que ainda têm essa possibilidade. Ou seja, jovens, devassos, prostitutas, outsiders. Um grande esporro de fertilidade. Um ato fálico par excellence.
   Todo praguejar é uma realidade que se mata. É uma possibilidade de vida sacrificada. O tom com que se diz, é um mundo que se abre: ou um mundo que se fecha. A forma como somos, como agimos, o teor de nossos pensares, os encontros a que dizemos sim e os encontros a que dizemos não: tal é a medida de nossa lucidez. Quis-se chegar a Deus: para tal a humanidade europeia optou pela negação de toda e qualquer vivência. Pereceu pela incapacidade em conciliar-se a si e suas ideias puras ao caótico mundo. Por isso criou tantas miragens: não quis abrir mão de sua vontade de unidade, sua vontade de substância, e preferiu perecer: carregando um destino pesado; atribuindo por conta própria o peso à impermanência; para não viver uma vida “sem sentido”.