A
época de Marquês de Sade é uma fase da história da humanidade de
constantes reviravoltas: sociais, políticas, dos costumes, da ética,
da religião… e da relação íntima dos indivíduos europeus
consigo próprios. Sua autoimagem. Sade é o rosto que perdurou até
os dias de hoje de um tipo de indivíduo frequente em sua época,
meados do século XVII e XVIII. Sua literatura representa uma forma
de vida, de arte e filosofia em certa medida arrebatadoras,
revolucionárias, até mesmo perturbadoras vistas sob a ótica da
moral conservadora, vigente em toda a Europa por tantos séculos. Não
à toa foi um dos maiores protagonistas no palco da Revolução
Francesa: uma das grandes tentativas da humanidade europeia em
superar de uma vez por todas todos os medos que a fizeram escrava e
impotente. A crença em deuses carrascos e a consequente tirania dos
governantes, a vontade de domínio a todo custo, enfim: políticas
escravizantes.
Sade
incentiva seus leitores à destruição completa dos pudores, nos
demonstra sua falsidade: toda narrativa religiosa, punições
divinas, infernos eternos, felicidade e paz eternas, não passam
todas elas de contos de fadas criados para paralisar de medo aqueles
que neles acreditam, superstições – todas elas têm unicamente o
objetivo de limitar, castrar, escravizar a imaginação, a
espontaneidade humana, ou melhor, a intenção com que elas são
utilizadas no âmbito social. A fonte inesgotável de vida e
criatividade humanas. E essa é, certamente, a base de toda a
formação da sociedade em que Sade se situa.
Toda
essa tirania social, que inclusive é a geradora de todo tipo de
distúrbios – essa moral que sem mais delongas decide o que é o
certo e o que é errado – estabeleceu o principal alvo de todo o
seu asco no sexo. É o sexo,
também, o principal ponto de partida da “desconstrução”
engendrada pela literatura sadiana: o
que ele mais quer em seus escritos é nos demonstrar como é,
especialmente, por uma falta
de ação,
por paralisia mesmo, que todas as leis mais sagradas são erigidas.
Uma vontade de
inação, de não-movimento: o que contradiz toda a experiência do
mundo, da vida, enfim. Essa inação é a causa e é o efeito dessas
formas de vida, dessa alienação para com o corpo; dessa não
revisitação dos preconceitos, dos “mandamentos”, das leis que
regem a existência.
Toda
autoridade é ela mesma uma grande fraqueza: ao menos a autoritária,
castradora, ignorante da complexidade da vida. É ela própria uma
falta de vontade em entender, compreender, experimentar. O
Estado (ou Deus) é a condensação de todo um imaginário que “está”
na consciência dos indivíduos, é carregado por eles, alimentado
por eles: e representa uma forma de vida que não efetiva e não quer
efetivar a si própria. –
Deus
é carrasco, e não ama sua criatura até que ela não mais seja
aquilo que ela está destinada a ser. Deus não ama: pune. 99% dos
casos. –
Estar
em condição de subjugação a essa força tirana por certo é
escravidão: e eterna.
A
crença na impossibilidade do perdão de Deus mas que ainda assim
anseia por ele, a ânsia
por Deus,
por Verdade,
gera uma tal paralisia nos corpos –
uma
vez que não há sequer um ponto fixo em todo o universo –
que
apenas isto já
é todo o motivo suficiente para compreender os distúrbios, as
loucuras, ou
melhor, toda
autoridade, toda imposição, toda violência, toda castração. Essa
é a base do indivíduo moralmente correto, da família tradicional,
do Estado –
indivíduos
pela metade.
Essa é a grande graça de A Filosofia na Alcova, seus personagens
ensinam uma menina que mal começou a viver, e ainda não se viu
infectada pelo asco –
logo
cedo ofertado pelo ninho familiar –
à vida, à sua arbitrariedade, ao seu acaso, seu caos.
É
a descoberta do próprio corpo: é a descoberta do
corpo.
As lições aprendidas na alcova são a possibilidade de mudar a
direção dos caminhos –
perverter os
caminhos –
que
estão começando aos poucos a ganhar força na cabeça de Eugénie:
a moralização, o ranço, a sensação de um desejo não cumprido,
de uma vida vivida pela metade. A alienação de si, a parca
compreensão de si e dos outros; o estranhamento. Todos nós temos
pênis e vaginas, assim como temos olhos e mãos. Como é possível
viver sem reconhecer-se por inteiro? Daí resultará um meio
movimento, meio ser. E a pergunta: o que eu seria se tivesse sido?
Podemos
entender a soberania dos personagens sadianos quando usamos metáforas
que nos aproximam mais de sua humanidade: movimento, afeto, calor,
são expressões linguísticas que remetem a uma mesma intuição.
Deixar ser é
deixar florescer, deixar revigorar: fazer filosofia na alcova é como
ascender acima das plantas daninhas, que se encontram na escuridão,
em antros pouco arejados, e rastejam débeis à procura de um mínimo
de ar e alimento. É ir direto ao sol, acima do topo das árvores,
afastar tudo aquilo que impede essa saúde, através de um esforço
constante de filosofia, amizade… e sexo. É antes de tudo um
trabalho, um trabalho de amor.
Sade
põe-se numa posição de polêmica: ele se utiliza de palavras como
perversão,
maldade,
sujeira,
para dar uma alfinetada naqueles espíritos nos quais ainda se
encontra asco moralista. Seus leitores veem antes a si próprios.
Sade soa doentio
àqueles que são, eles mesmos, doentios, por força de inércia.
Inércia gerada pelas constantes proibições, imposições,
culpabilizações,
enfim. Mas pode vir a ser um grande remédio, uma nova consciência,
um reacender de forças ocultas. Com uma simples leitura.
Como
já foi previsto com essa mera introdução, o filósofo Sade vê no
estímulo do corpo –
nas
milhões de formas de estimulá-lo –
um caminho fértil para se chegar à filosofia. É como se ele
soubesse o quanto uma humanidade, por ausência de toque, está
embotada em ideias. As ideias filosóficas elas mesmas têm cheiro de
antro fechado, os corpos estão
em estado de putrefação parcial por serem por tanto tempo
ignorados, rechaçados, desdenhados pela religião, pelas ideias em
vigor: ideias que querem solidez, querem pureza, querem eternidade.
Mas nada no mundo é eterno: tudo corre como um rio, em movimento,
tudo alterando, nada sendo o mesmo duas vezes.
O
filósofo da alcova quer incentivar seu leitor a rir de seus
demônios. Ao menos quer ensinar seu aprendiz a conversar com eles,
experimentá-los. Experimentá-los ao limite, em graus sempre
maiores; indo cada vez mais a fundo, experienciando tudo o que, num
contexto de opressão, não seria sequer cogitável. Imagine-se um
vórtice: tal é o formato de um ânus. Tal é o movimento que Sade
quer que façamos –
em
meio às orgias –
com nossas ideias. Não há distinção entre o corpo e a mente: não
há hierarquia –
antes,
há uma hierarquia invertida. Tudo começa no corpo, no gozo, e se
ramifica nos pensamentos, como frutos de uma árvore constantemente
fertilizada.
Tudo
se transfigura em novas formas quando se tem a coragem, os colhões,
para se fazer algo que até então se recriminou –
unicamente
pela força do hábito, ou pelo medo, ou pela ignorância. À mente
surgem novas impressões, risos: são máscaras que adotamos,
personagens que encenamos. Somos autoritários quando sentimos que
são conosco, o somos conosco
mesmos:
temos essa relação íntima de alienação, enquanto não há um
incentivo como o de Saint-Ange e Dolmancé. Acreditamos haver algo a
se recriminar em nós por sentirmos afetos que os outros recriminam:
não nos vem à mente, ao menos em primeira instância, criticar essa
recriminação mesma. Quando jovens demais acabamos crendo na solidez
desses preconceitos, não os conectando com as possíveis frustrações
e medos daqueles que as propagam: dessa ausência de posicionamento é
que surgem todas as loucuras, miragens, sobre punições eternas,
culpas que nunca acabam.
Sade
aprecia o deboche. Ele sabe que depois de um tempo um ser humano
atormentado tem de decidir se permanecerá nessa situação de
miséria ou retornará à superfície alegre e sempre confiante dos
acontecimentos do mundo. Ele sabe, igualmente, que há um grande medo
da sujeira, que toda moral é
medo
de se sujar, medo da mistura.
Várias filosofias emergentes na época fizeram, também, uma
tentativa de esclarecimento para com a mutabilidade dos fenômenos do
mundo, Diderot com a sua visão musical sobre o corpo e o mundo,
Condillac com seu sensualismo… entre outros. Todos em grande medida
utilizando-se de linguagem científica; todos, também em grande
medida, retomando conhecimentos antigos, como o hedonismo epicurista,
o poema De Rerum
Natura,
de Lucrécio, sobre a natureza das coisas –
que
introduz a noção de átomo, numa tentativa de explicar o mundo sem
quaisquer superstições. Tudo com a intenção de criar
movimento e
extirpar os medos que tornam impossível a vida humana.
A
filosofia de Sade é uma explosão, pronta a ferir todo aquele que se
mostrar ofendido. Uma explosão apenas: nem boa nem má, mas que por
certo virá transformar tudo o que tocar. Matando ideias débeis –
matando
os débeis
–,
reflorescendo, revigorando aqueles que ainda têm essa possibilidade.
Ou seja, jovens, devassos, prostitutas, outsiders.
Um grande esporro de fertilidade. Um ato fálico par
excellence.
Todo
praguejar é uma realidade que se mata. É uma possibilidade de vida
sacrificada. O tom com que se diz, é um mundo que se abre: ou um
mundo que se fecha. A forma como somos, como agimos, o teor de nossos
pensares, os encontros a que dizemos sim e os encontros a que dizemos
não: tal é a medida de nossa lucidez. Quis-se chegar a Deus: para
tal a humanidade europeia optou pela negação de toda e qualquer
vivência. Pereceu pela incapacidade em conciliar-se a si e suas
ideias puras ao caótico mundo. Por isso criou tantas miragens: não
quis abrir mão de sua vontade de unidade, sua vontade de substância,
e preferiu perecer: carregando um destino pesado; atribuindo por
conta própria o peso à impermanência; para não viver uma vida
“sem sentido”.