sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Breve digressão sobre um filme

     Pergunto-me eu às vezes: a que necessidades humanas vem satisfazer a expressão fílmica? Qual é o valor, para o conhecimento humano, dessa forma artística? O que é que um filme, com a sua narrativa e a sua cadência do narrar, significa para a cognição? Vem o cinema como simples medicação momentânea a um modo estritamente moderno do viver? É ele a janela, que fomos capazes de abrir, de acesso a um tempo inacessível num contexto da vida quotidiana? Digo, num contexto de constante aceleração da vida, em que não há espaço para o fluir espontâneo do existir, fluir esse que transcende as divisões tão constantes às racionalizações, como por exemplo sujeito-objeto? É o cinema essa janela?
     A título de análise filosófica, e com isso intento dizer uma análise que não vem a se restringir a um diagnóstico de psicologia, nem a mera crítica de arte, ou muito menos a questões de técnica. Também não é meu intuito narrar como que biograficamente, ou então contar uma simples história, a história de um filme: não, a nada disso quero restringir-me. - - A título de análise filosófica, propus-me a discorrer, como trabalho para esta matéria, sobre um filme, pelo qual nutro admiração e até mesmo espanto; também ao seu realizador, pela genialidade. Esse é Aguirre, a Cólera dos Deuses, de Werner Herzog.
     Tenho aqui em mãos apenas computador, enquanto a minha mente vai fluindo junto das mãos que teclam estes botões. Pensamento é um modo do agir. É um agir interiorizado. E enquanto isso também vou me nutrindo em intervalos de escrita do filme pretendido. Não é tarefa simples traduzir em devaneio filosófico uma obra cujo modo de expressão nem sequer leva em conta como um dos seus principais meios a palavra.
     Um filme, se pensado como coisa, objeto - e me pergunto ainda se estará certo esse meu modo de me iniciar... - como algo, que tem início e fim, e narra uma história, pressupondo-se que essa é algo que possui limites bem definidos, algo que pode ser medido, calculado, enfim: uma coisa assim não apresenta muito grandes desafios. É algo a ser contado muito rapidamente, como que entre parênteses ou nota de rodapé. Não há grandeza em algo delimitado, circunscrito, fechado, como a mônada o é, um número ou o átomo. Atemporalidade não é algo que ganha importância no universo cinematográfico; antes o oposto. Cinema é como que o "resultado" de um constante modelar do tempo mesmo, sendo assim nada de fechado.
     O fato é que ao ser iniciado um filme se abre como um universo, cheio de caminhos a se percorrer, cheio de infinitas possibilidades. Toda e qualquer tentativa de circunscrição palavrística concerne muito mais às intenções e características do seu autor que à obra de que se está a tratar. O objeto ali é algo de muito distante; o sujeito do conhecer como que dança ao seu redor, monologando, desdobrando a linguagem que ora se apresenta ao seu alcance. Falar de algo imóvel como que parece um tanto mais fácil que de algo cujas principais características é justamente o movimento e o tempo. No entanto a tal facilidade do primeiro também é algo de ilusório, como que o resultado da persuasividade do discurso objetivo. No entanto cá estou eu, numa tarde de feriado, a falar de Aguirre.
     Em Aguirre acompanhamos a expedição liderada por Francisco Pizarro, que embarca numa empreitada, partindo do Peru em direção ao centro da Amazônia, à procura de El Dorado. El Dorado é um mito criado pelos indígenas logo após a bancarrota no Império Inca, como resposta à miséria, indigência, sofrimento, gerados pela destruição de toda uma cultura, e pelo choque desta com uma cultura totalmente diferente e de extremismos colonizatórios nunca por eles antes vistos. Ao que tudo indica, há duas maneiras de se compreender o mito de El Dorado. Há a ideia de que este seria um lugar, como que a expressão de uma utopia, uma idealização, uma miragem, de um lugar perfeito, onde não há sofrimento, e há muito ouro. Mas também podemos entender El Dorado como sendo o mito sobre um homem, que se banhava de ouro, era perfeito em sua constituição, tinha o completo domínio sobre si, e regia a ordem das coisas ao modo de um deus. No filme a expedição está à procura do lugar chamado El Dorado.
     O motivo de eu ter escolhido esse filme, que nem brasileiro é, é pela intuição que me acometeu de haverem muitos pontos em vários instantes que remetem a uma certa universalidade. Estive a remoer tais pontos na minha mente, enquanto fazia as inúmeras atividades do dia-a-dia, como que de modo inconsciente, deixando tais pensamentos virem até mim. Comecei como que tateando o escuro, seguindo apenas meu faro, que me indicava simplesmente que ali, depois de constantemente ruminar, eu haveria de encontrar grandes questões, quase que matemáticas, metafísicas, paradoxais, até mesmo cômicas, dignas de um grande filósofo. Como o foi e ainda é Werner Herzog.
     O filme se introduz com um breve texto, indicando seu miolo, e algumas procedências. Em seguida somos como que jogados a uma perspectiva lá do alto, em meio às nuvens, no topo de uma montanha, na floresta tropical do Peru, acompanhando a expedição peruana com todo o seu pesado aparato de guerra - canhões e todo tipo de armamento, armaduras, etc. -, vestimentas aristocráticas - há até mesmo uma liteira entre eles -, juntamente dos indígenas escravizados: Herzog não nos poupa dos detalhes do tratamento que eles recebem. Há ali algo de bizarro, muito bizarro, acontecendo. O que significa essa procura, uma expedição, uma enorme empreitada humana, que segue com enormes dificuldades seu caminho, quase que não conseguindo, quase que parando, seguindo com todo o seu peso, tanto fisicamente falando quanto culturalmente, à procura de um lugar, que nada mais é que fruto de lendas indígenas, mito que era fruto da indigência gerada do choque de culturas mesmo, da colonização: o que significa essa ânsia por descoberta?
     Conforme vamos acompanhando o grupo de colonizadores em sua empreitada em direção a El Dorado, muitas coisas vão acontecendo ao longo do caminho. Todas as figuras típicas ali se encontram. O padre, que ali se encontra na intenção de levar os evangelhos àqueles que ele mesmo julga bárbaros, desconhecedores de Deus e da verdade. O negro, que é excentricidade, trazido de algures de África para trabalhar nas Américas como escravo, os nobres, cuja fragilidade facilmente se vê, os loucos e ensandecidos conquistadores, cegos pela ânsia mesma da tomada de posse; e por último, e também antes de todos, as mulheres, que antes acompanham seus pais e maridos em suas empreitadas, mas não compartilhando em nada daquele desejo ensandecido. Como que antes já sabendo do destino que lhes espera: ou seja, um fim trágico. Filosoficamente falando a posição das mulheres é extremamente mais filosófica e sábia, essa a de não falar, acompanhar como que dos bastidores, e também o manter-se de mãos limpas ao não se embrenhar nessa tão obscurecedora atitude que é o violentamento e perversão da natureza que toma o nome de conhecimento e vontade de verdade.
     Pensava eu, então, de mim para comigo mesma: que significam exatamente esses seres humanos, com todas suas atitudes, bem específicas atitudes, a embrenhar-se em meio à densa floresta, seguindo o curso do rio, trazendo todo o peso da sua própria cultura pra um meio completamente adverso, enfrentando todo o desconhecido que esse meio possa trazer, um grupo de pessoas à procura de um suposto lugar, El Dorado, que inclusive são eles mesmos julgam ser um lugar, o qual poderia primordialmente ter sido muito bem a idealização de uma pessoa, como um líder mesmo, algo relacionado muito intimamente à cultura indígena local, uma imagem de um homem enviado por algum deus, divinizado de alguma maneira, remetendo sua ideia à luz, ao ouro, sendo ele chamado de "o dourado"? E supondo que o mito tenha surgido justamente da indigência dos ndígenas frente o colapso a sua cultura, o que significam esses europeus a se identificarem ainda mais com o tal mito? O que isso diz deles? Tais eram os maiores questionamentos que me ocupavam, dentre outros que viriam surgindo ao longo do caminho.
     Antes de meros violentadores, são retratados muito humanamente esses conquistadores, com toda a sua vilania. Há entre eles uma enorme discórdia sempre pairando no ar, como que estando eles juntos por mero acaso ou por mera necessidade: cada qual pensa muito mais em si e em suas idealizadas conquistas, que são muito mais delírios e miragens, surgidas em meio à febre, que realidades. Há ali uma ânsia de atemporalidade nunca vista antes. Provavelmente nem sequer entre os indígenas que viram ruir sua cultura.
     Sinto que há naquelas almas grande escuridão. É complicado não cair em clichês nessas coisas quase que religiosas, mas aquela frase de Agostinho, a de que o mal é ausência de luz, cabe aqui perfeitamente. Não há, entre a terra em que os colonizadores pisam, e eles, enraizamento algum. Não houve tempo para que isso acontecesse: e não que não houvesse receptividade, pois ela sempre há. Mas aquele modo de agir perante a realidade, aqueles modos objetivos (só para começar o assunto a história de El Dorado foi compreendida objetivamente por eles), aquelas intenções de descoberta, que é antes um retorno eterno de um encobrimento, um afastamento, um obscurecimento... Aqueles seres, ao acompanharmos o seu trajeto, e ao pensarmos que talvez El Dorado fosse uma pessoa, a idealização de uma pessoa: percebemo-os bem se temos consciência da sua errância. A alma ali foi ludribriada pela promessa de algo impossível, e essa ânsia os faz delirar e andar rumo à escuridão da mata sempre mais, enquanto eles mesmos perambulam por entre a escuridão da sua própria natureza.
     É um estado colérico do ser, como diz o próprio título. Ainda que levassem eles seus corpos junto do trajeto percorrido pelo rio, e se embrenhassem na mata selvagem, nunca seriam eles rio e mata. Nunca porque jamais deixariam aquilo que a eles parecia muito mais valoroso que o rio e a mata: o ideal. Aquilo que lhes fazia vibrar, a promessa. O estado de ânsia do orgânico, como que mal mantendo-se em sua própria natureza, por falta de natureza, mesmo. Falta do ser, da verbalidade e do que a verbalidade significa. São eles descultivos e descultivadores; saindo de suas terras e indo em direção a outras com o discurso de estarem levando o bem, Deus, progresso, ciência. "Nem que pra isso seja preciso dizimar tudo que é humano e não-humano também": tal a natureza que imprime a sua própria condição de descultivo. Condição essa que inclusive os impede de ir mais longe. Mal embrenham-se na floresta e já sofrem eles a imediatidade da força opressora da multiplicidade de vida ali existente. Vemos dissolverem-se Deus, bíblia, propriedade, autoridade, colapsando como que tudo de uma só vez: pois de toda essa antinatureza eram eles próprios constituidos; é a carnalidade da idéia: e eles mal se sustentavam em seus primeiros passos, morrendo logo em seguida. O que subsiste frente toda intempérie é Aguirre, que acredita ser ele mesmo o enviado de um deus colérico para conquistar aquela terra prometida; o delirante Aguirre, que antes de proteger, cuidar e defender tudo aquilo que lidera, deixa tudo ruir, tudo morrer, descuidadamente, tudo ali morrendo pelos seus próprios ideais, os ideais de Aguirre. Como o herói que se sente deus após longa batalha e é mais um perigo à sociedade que algo de vantajoso: esse herói pode matar o que lhe é mais caro, por cegueira de batalha, mesmo, por incapacidade de distinção entre si e deus, por hipertrofia de consciência. A vida humana, se depende de muitas condições específicas para viver, dentre elas certamente está a necessidade em se reiterar de tempos em tempos essa separação. Aguirre subsiste, sim, mas também ele mesmo não é nada, pois que é o herói e a sua guerra senão para defender sua própria cultura, prole, idéia? Já estava ele como que dissolvido em sua própria vaziedade e no desespero dela surgido, e seu fim não foi senão a reiteração dessa mesma condição.
     Era um sonho para eles impossível, de cuja ânsia nem eles mesmos tinham consciência que carregavam: esse de ser rio e mata. Para sonhar esse sono antes era preciso o sono, ou seja, a inconsciência, e que naturezas eram aquelas senão inquietas naturezas, insatisfeitas, grandes insatisfeitas naturezas? Que antinatureza a eles mesmos não soaria essa de reunir contradições como mata e rio, com o ideal de El Dorado... Pois ama-se El Dorado pela sua impossibilidade mesma. É fruto do desprezo dos homens pela temporalidade da vida. O El Dorado dos colonizadores é fruto da miséria que aflora da falta de boa vontade da humanidade para com as suas próprias vidas. E assim esse modo de viver se repete, ou pode vir a se repetir, eternamente retornando, nas mais variadas instâncias humanas, ou seja, em todo lugar onde se conta uma história.






sábado, 1 de setembro de 2018

O outro

Esse percurso que é preciso sempre e mais uma vez percorrer em direção ao outro não é em nada um percurso que se pode antever, como se fosse algo de linear, uniforme, previsível. Antes, é possível talvez um certo cuidado de nós mesmos, uma seleção mais acurada daquilo de que escolhemos nos alimentar, sejam vivências, alimentos ou cultura. Mas não só isso... Mais importante que isso ainda, há aquela pulsante urgência por criação que nos sufoca tanto, tanto, a ponto de a sustentação do mundo sensível depender justamente desse ato de criação, disso que não é senão uma decisão, um salto que se deve fazer com todo o coração ou não se deve fazer de todo. O ruminar é preciso, mas ele nunca é suficiente para se chegar à superfície dos acontecimentos. A maior parte do tempo posso sentir o ritmo da vida indo numa só direção, e essa direção é como um fenecimento... e me pergunto: onde eu posso encontrar uma fonte de vida pura donde eu possa beber sem acanhamento, em meio a esse grande caos? Preciso de algumas gotas dessa vida, senão perderei o fôlego. - - Esse caminhar em direção ao outro, que exige de nós vivacidade e agudeza, ele é algo que acontece antes como encontro de estados, algo fortuito, como chance, possibilidade. Haverá algo mais que isso?

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Jocosa essa questão da falta de sentido, tão bem trabalhada pelos inúmeros filósofos. Eu, inclusive, me situo nesse hiato. Seria talvez porque me impus objetivos pequenos demais, e até mesmo quis me fazer encaixar às forças em ideias profanadas demais? Com certeza deve ser uma coisa ou outra. O corpo, com toda a sua potência de ação, limitado aos vãos e desvios da cidade. Tudo o que ele vê são repetições horrívelmente vazias, e repete em si aquilo que vê. Um perfeito espelhamento: e a força que se faz lá no íntimo de resistir a essa queda constante às vezes faz-se insuficiente, também. Pra lá com resposabilidades! Chega de raciocínios tão óbvios! Sim, quis, sim, escolhi, sim, poderia ter feito de outro modo. Mas não fiz, e agora? Sou o resultado de inúmeras forças. Eu mesma que escrevo agora nada mais sou do que o resultado da equação passado-presente-futuro. E também pra lá com o questionamento filosófico demais! É também igualmente um estilo, mas que remete a uma situação inativa. É o limbo perfeito - chega-se a ele e só assim os raciocínios filosóficos escorrem para dentro de nós como água. De outro modo geraria repulsa, pois a vida ela mesma é movimento. A ausência de uma identidade, ou pior, travestir de ciência toda aquela análise sobre o pessimismo, em nada disso há autenticidade. Quem foi que disse para negar a tudo e que só através desse modus operandi a essência do mundo seria palpável? É um jogo bastante perigoso, esse de arriscar querer ser deus. Esse de se deixar ludibriar pelo mito do conhecimento. Sou velha já, mesmo nova, e sei o que vivo. Vivo o hiato da existência, e pra cada rosto que encontro é um silêncio. E sabendo de tudo isso, que ganho, senão talvez uma arrogante atitude perante a possibilidade infinita que a vida tem de brotar por todo canto? Que vida é essa que eu vejo aqui, hoje, perante os meus olhos? Que são todos esses costumes que se interrompem a cada novo grupo, o costume-interrompido por excelência. - - O corpo, a dor que o corpo é, a ferida entre as minhas pernas: eles expressam algo constantemente, que é que eu não estou conseguindo ler? Há forma mais apropriada para ler o que o corpo expressa? Caminho por horas e o corpo dói porque resiste à força da inércia, à força da angústia. O coração bate forte no momento do descanso porque esteve quase inativo por tempo demais. E que é o coração físico senão a nossa potência mesma encarnada? Pulsa, como voz pulsa, como riso pulsa, como imagem pulsa. E se o coração anda fraco talvez toda a recepção sensorial ande fraca, a expressão afetiva ande fraca, a fala (as falas...) não tenha saído no momento certo e assim tenha perdido para sempre a possibilidade de sair. A ação dos outros sobre nós, a voz dos outros sobre nós, nossa indisposição perante a vida, a arrogância juvenil de não dispor-se. O engano que é tanto a projeção que fazemos do que é morrer, que nos causa temor, e igualmente o enorme engano daquilo que entendemos como poder. Como pode que poder sobre a iminente morte seja nada mais que uma ausência de ação? Um negar-se a - como se o evento estivesse a ocorrer fora de nós, como se não dependesse de nós justamente dar molde àquele ocorrer. E assim espera-se - nós, o evento, esperam - por uma resposta. Não damos, não respondemos, acreditamos que não somos aquilo que nos acomete. Como isso é possível? Passa o tempo e a não-identificação com aquilo que nos acomete aumenta mais e mais, até chegarmos ao ponto em que dizemos: absurdo, desespero, falta de sentido. Adiamos nossas contas com o universo, esse universo que os antigos chamavam de antepassados. Adiamos nossas contas com nós mesmos, pois que somos nós senão a ação, ação entendida como confluência entre corpo-mente-alma? Isso e nada mais que isso é corrupção: perdemos ser ao escolhermos não agir. Temos medo da perda, da morte, mas expressamos esse medo com indiferença, fingimos não ver aquilo que nos ocorre, e assim adiamos o inevitável: a vida. Atualização de ser, era esse o propósito de um ritual, é esse o propósito da dança, da fala, dos costumes. Matar deus nada mais é que negar-se a tais costumes, e não colocar nada novo no lugar - como podemos crer tanto nessa deusa ciência, sendo que ela nos põe numa situação de tão grande convencimento da nossa auto-consciência esclarecida e ao mesmo tempo sermos assim, seus títeres? Somos bobos, porque estamos convencidos de não o sermos. E todas essas classificações de ideias, não são elas uma barreira ao acesso à vivência daquilo que elas querem significar?

sábado, 3 de março de 2018

Ateísmo

Noto a necessidade da afirmação da não-existência de Deus: mas para se lutar contra algo, ou dizer "não" para aquele algo, negar a sua existência, é antes preciso que se acredite profundamente na sua existência. Da mesma forma, escolher a afirmação da crença na existência de Deus ao ateísmo é também uma grande necessidade de que Deus exista. Isso não necessariamente é acreditar na sua existência. Há algo de impertinente na afirmação linguística. Afirmar linguisticamente é, de certo modo, um ato posterior à impressão e, acima de tudo, uma resposta à passagem dessa impressão mesma. À passagem do tempo e a necessidade de cristalização. A afirmação linguística é uma cópia imperfeita, caso se acredite n'algum fato prévio perfeito mas, antes, uma criação artística - que pressupõe a memória. A memória mesma é algo de artístico, um produto de artista - e não-permanente, uma vez que se transforma, à medida do futuro que aceitamos adentrar-se em nós. Essa memória, que sentimos enraizada na língua, é coletiva. A comunicação interpessoal é o que presta alma à língua, de modo que todo sentido que uma palavra como "Deus" evoca sempre haverá de estar relacionado com essa memória coletiva de um determinado lugar e cultura. O sentido e o afeto evocado na pronúncia de uma palavra estão intimamente ligados à memória de um povo. De modo que, quando digo que Deus não existe, estou me referindo unicamente ao sentimento de Deus que a minha cultura teve até então. Que sentimento é esse? eu me pergunto. Da mesma forma: o que a necessidade em negar Deus diz sobre os meus contemporâneos? A fuga é de quê? Do passado: dos atos dos meus antepassados, dos seres humanos que nos precederam. Da sua loucura, caos, desespero, humilhação e sufoco, que reverbera através dos tempos até o dia de hoje, que grita nos ouvidos das pessoas por intermédio da cultura. Porque, o que é Deus senão uma projeção da consciência na tela azul do céu? Existe um fio invisível que puxa a muitos de nós para baixo, para trás, para o nada, para lugar-nenhum, como que uma força que suga alma, vitalidade, brilho, e que parece nos obrigar a agir de certas formas que nos escapam do controle, como que um afogamento gradual, um apagamento, um engolimento gradual, cuja porta de entrada é aquilo que socialmente está sacralizado nas ditas leis da boa conduta. Uma vez que a preferência é a proteção e não o livre-expressar do corpo e da mente, o ciclo vicioso se inicia. O escambo para a proteção é justamente a espontaneidade. A liberdade econômica ganha, a liberdade metafísica perdida. Muitos eruditos e teóricos surgem, muitos moralistas surgem, muitos cães-humanos contentes também... Não que isso seja um problema, mas a tirania é a grande mãe da felicidade aconchegante, em que, enquanto se descansa e se come bem, se esvai aquela dita vitalidade animal essencial à sobrevivência. Torna-se um jardim aberto a qualquer um, qualquer sentimento, qualquer erva daninha, não há cuidado nas escolhas e nas palavras, até que, em pouco tempo, a nossa auto-imagem se torna um rascunho todo rebocado, não fosse a razão se esforçando nesses tempos difíceis...

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Hoje

Ah meu Deus o que eu desprezo é justamente a perfeição que não tem tons alguns de espontaneidade na voz! E eu me tornei isso. Mal consigo me achar e só alcanço a realidade por meio dos subterfúgios dos conceitos! Antes hipóteses agora e só depois intuição e quem sabe nem isso!

Aversão

Uma vez que sente aversão profunda, como não mais senti-la? O grosseiríssimo sentimento de aversão por algo que se viveu, um acontecimento que se expressa em termos de passado mas que tem alcances tão presentes como lâminas afiadíssimas se adentrando constantemente nas entranhas. Como "salvar-se"? É por uma simples contenção do pensar? algo como adquirir constantemente e aos poucos um sinal de alerta para um estado muito perigoso a que se sabe exposta? um exercitar da distração, até que se atinja o esquecimento e com ele a plena serenidade? Em estado de aversão o corpo se contorce até a dor. Esse estado, inclusive, se expressa em tantos graus é possível imaginar: angústia, tristeza, desespero, etc. Todos sentimentos provindos da aversão. Um calabouço em que se joga a própria alma nesse minúsculo instante quase inapreensível da lembrança, da consequente tristeza, e logo depois o nojo. Cria-se um abismo tão grande entre a cabeça e os pensamentos puros e a existência de um corpo, olha-se para ele com aversão, condescendência, desprezo, asco. E tudo isso por causa de palavras vulgares, PALAVRAS. Por que a vulgaridade? POR QUE A VULGARIDADE? Esse estado de aversão distorce tanto a realidade que perde-se a consciência, chega-se à extrema loucura, desestabilização, asco profundo, PROFUNDO. E quem morre sou eu, e as palavras são cristalinas como água, e quem não sente o que eu sinto rirá.

Beleza e Feiura

Seria o caso de exatamente a ênfase que nós, humanos, damos à Beleza, ser a causa direta de um completo enfeiamento? Quanto mais se enseia por uma pura beleza idealizada (cujo pressuposto principal, ou o grau mais alto, o cume, o ápice, é a inatingibilidade), mais feiura se cria na consciência que se depara constantemente com o acaso, a incerteza, a instabilidade. A completa indefinição que é o mundo. Desse modo, um verdadeiro amadurecimento da reflexão humana se daria, podemos concluir, pelo aprendizado da passagem pelo feio. Temos que ter a coragem de questionar inúmeras coisas como "O que é o feio?, Que tratamento lhe damos? Não seria o nosso tratamento mesmo que reitera a sua feiura? Num instante de ausência completa de preconceitos esse feio poderia aparecer aos nossos sentidos de alguma forma belo? A repetição eterna dos mesmos valores estéticos não é uma ânsia por não conhecimento do mundo? O feio é feio em si, ou o feio é feio porque não temos ação diante dessa aparição e somos rudes demais? Ou é-nos agressivo, porque interpretamos como agressivo, e assim reagimos agressivamente, e para tudo isso bastando apenas que ultrapasse nossas valorações costumeiras?"

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Contemporâneo significa: amigo. Um contemporâneo é um amigo. Muito melhor do que dizer que um amigo é um contemporâneo. A contemporaneidade do relógio é nada ou quase nada àquele que entende de amizade, pois o tempo da cidade quase sempre soa estrangeiro àquele que nela vive. E é o que com recorrência acontece: modernidade evoca moda o que evoca passageiro. Modernidade evoca rapidez, ausência de reflexão, ausência de tempo para pensar, para entrar em relação, compreender, entender, pensar, articular o mundo em conversas, pensar as palavras - não há tempo para gritar de volta o estímulo recebido. Há demasiada informação e essa mesma informação é que nos entorpece, antes de informar qualquer coisa. O mundo corre rápido e conforme isso acontece nos lentificamos ao ponto da demência, e o artista acaba sendo esse ser milagroso que porque mal digere tem a capacidade de responder ao mundo de modo, não espelhado mas, distorcidamente belo. A arte expressa a força daquele ser que se recusa a se sentir pequeno. Ele é, e isso mais do que basta para ter todo o direito de responder sobre os seus próprios sentidos.

domingo, 26 de novembro de 2017

Ser

A eterna superstição do Ser.
Uma pedra em meio caminho da linguagem. Usamo-la (a linguagem) para apreender, encarcerar. Não para fazer mover. A intenção que molda o ato da fala é a de definir. Passa-se, logo em seguida, a atribuir esse caráter circunstancial a uma concepção essencial da linguagem. Acredita-se, por força de hábito, que esse é um caráter intrínseco à expressão. "Definir" - tal é a função que cremos ser a da linguagem. Ilusão das ilusões. Uma vez que acreditamos ser esse o papel da língua, nos enveredamos cada vez mais num labirinto particular. Ao mesmo tempo que o criamos. O labirinto da palavra. Uma vez que somos seduzidos por uma certa intuição do definitivo, pela substância, pela essência - que nada mais é que uma interpretação de pura pressa -, passamos a ver a realidade, o seu acaso, a sua impermanência, o seu caos, as suas dores e as suas imprevisibilidades, como erros a serem corrigidos. Acreditamos num certo discurso de "melhoramento do mundo". Queremos entender, queremos teorias, queremos uma verdade permanente. E quanto mais nos esforçamos pela definição, mais evidente é a impermanência aos nossos olhos. E por medo, por medo!, não aceitamos o desapego das "verdades" erigidas pelos homens. Queremos porque queremos crer!, mas o universo faz o exato oposto. Quer que percebamos a magnânima superficialidade do mundo, seu propósito estético. E nos aparece aos sentidos como um espetáculo de cores e sabores e sons dos mais diversos; em tudo podemos encontrar uma clareira, em cada pequeno objeto uma fonte inesgotável de vida, jorrando eternamente, transbordante. Em lugar de desapego, preferimos o desprezo: não aceitamos que em lugar de uma morte definitiva, todas as coisas se transformam em outras, se misturam entre si, se refazem em novas combinações. Por medo de uma palavra e os milhões de fantasmas que nela residem, aos quais a nossa imaginação mesma dá de alimento, acabamos nós mesmos sem alimento. Recusamos a aparência, julgando-a falsa. Não queremos mais ser crianças, cuja seriedade consiste em jogar, em brincar, em se deixar levar pela correnteza dos acontecimentos. Nós desprezamos. O Deus que herdamos é o grande desprezador: um ideal feroz de humanidade. Quanta soberba não há em dizer que nada vale a "pena"? Quanto não há, também, em recusar-se a viver, por medíocre medo do engano? Preferimos o desprezo ao desapego. Preferimos petrificar a dançar. Preferimos morrer de sede e de fome a ceder. Não temos segurança em nossa força, e por isso escarramos injúrias contra o Outro que nada mais é do que o Si Mesmo. Somos como Elisabeth Vogler, buracos negros carentes de tudo, sugadores de tudo, como vampiros: sofremos pela falsidade apesar da atuação poética mesma desse sofrer, como integrantes de uma grande peça teatral. Queremos sugar a vitalidade e encarcerá-la em brinquedos de cristal. Sonhamos, deliramos pela Criação. Idealizamos mundos impossíveis - porque impossíveis -, romantizamos as idéias até a vertigem. Até que, de recusa em recusa, aos nossos ouvidos toda fala agora tem seu erro, sua dissonância. Agora, todo minúsculo ato de fala é uma queda ou uma ascensão: é uma queda e uma ascensão. A diferença está sempre no como. Tudo torna-se crucial; estamos no cume da fraqueza. Quisemos ela (a fraqueza), pois só assim nos aprofundaríamos, se refinariam todas as sensações; perceberíamos a crucialidade de cada segundo. De onde extrair forças para agir? Não é possível que nos afundemos em verdades moldadas na pressa, na impaciência, na vontade bruta, para a qual tudo é questão de possuir ou matar. Como manter o equilíbrio da mente? Como nos desvencilharmos do vício da desconfiança, gerada pela concepção de falsidade, de engano? Sentir a urgência de existir, a pulsação de cada coisa, a grande, grande sensibilidade em carne viva da realidade, e ainda assim e por isso mesmo, sentir todo o prazer dessa sensibilidade?

Falou uma idealista que, por sofrer demais de seu idealismo, entendeu-o, e por isso deu piruetas de alegria e recitou esse breve texto aos ouvidos mais próximos, com amor. Terminada a leitura, arrefecida a empolgação, o texto retornava em sua memória, lhe demonstrando toda a sua brevidade, por meio de novas ramificações de pensamentos. Já não podemos mais creditar-lhe a autoria.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Sobre Sade

  A época de Marquês de Sade é uma fase da história da humanidade de constantes reviravoltas: sociais, políticas, dos costumes, da ética, da religião… e da relação íntima dos indivíduos europeus consigo próprios. Sua autoimagem. Sade é o rosto que perdurou até os dias de hoje de um tipo de indivíduo frequente em sua época, meados do século XVII e XVIII. Sua literatura representa uma forma de vida, de arte e filosofia em certa medida arrebatadoras, revolucionárias, até mesmo perturbadoras vistas sob a ótica da moral conservadora, vigente em toda a Europa por tantos séculos. Não à toa foi um dos maiores protagonistas no palco da Revolução Francesa: uma das grandes tentativas da humanidade europeia em superar de uma vez por todas todos os medos que a fizeram escrava e impotente. A crença em deuses carrascos e a consequente tirania dos governantes, a vontade de domínio a todo custo, enfim: políticas escravizantes.
   Sade incentiva seus leitores à destruição completa dos pudores, nos demonstra sua falsidade: toda narrativa religiosa, punições divinas, infernos eternos, felicidade e paz eternas, não passam todas elas de contos de fadas criados para paralisar de medo aqueles que neles acreditam, superstições – todas elas têm unicamente o objetivo de limitar, castrar, escravizar a imaginação, a espontaneidade humana, ou melhor, a intenção com que elas são utilizadas no âmbito social. A fonte inesgotável de vida e criatividade humanas. E essa é, certamente, a base de toda a formação da sociedade em que Sade se situa.
    Toda essa tirania social, que inclusive é a geradora de todo tipo de distúrbios – essa moral que sem mais delongas decide o que é o certo e o que é errado – estabeleceu o principal alvo de todo o seu asco no sexo. É o sexo, também, o principal ponto de partida da “desconstrução” engendrada pela literatura sadiana: o que ele mais quer em seus escritos é nos demonstrar como é, especialmente, por uma falta de ação, por paralisia mesmo, que todas as leis mais sagradas são erigidas. Uma vontade de inação, de não-movimento: o que contradiz toda a experiência do mundo, da vida, enfim. Essa inação é a causa e é o efeito dessas formas de vida, dessa alienação para com o corpo; dessa não revisitação dos preconceitos, dos “mandamentos”, das leis que regem a existência.
   Toda autoridade é ela mesma uma grande fraqueza: ao menos a autoritária, castradora, ignorante da complexidade da vida. É ela própria uma falta de vontade em entender, compreender, experimentar. O Estado (ou Deus) é a condensação de todo um imaginário que “está” na consciência dos indivíduos, é carregado por eles, alimentado por eles: e representa uma forma de vida que não efetiva e não quer efetivar a si própria. Deus é carrasco, e não ama sua criatura até que ela não mais seja aquilo que ela está destinada a ser. Deus não ama: pune. 99% dos casos. Estar em condição de subjugação a essa força tirana por certo é escravidão: e eterna.
   A crença na impossibilidade do perdão de Deus mas que ainda assim anseia por ele, a ânsia por Deus, por Verdade, gera uma tal paralisia nos corpos uma vez que não há sequer um ponto fixo em todo o universo que apenas isto já é todo o motivo suficiente para compreender os distúrbios, as loucuras, ou melhor, toda autoridade, toda imposição, toda violência, toda castração. Essa é a base do indivíduo moralmente correto, da família tradicional, do Estado indivíduos pela metade. Essa é a grande graça de A Filosofia na Alcova, seus personagens ensinam uma menina que mal começou a viver, e ainda não se viu infectada pelo asco logo cedo ofertado pelo ninho familiar à vida, à sua arbitrariedade, ao seu acaso, seu caos.
   É a descoberta do próprio corpo: é a descoberta do corpo. As lições aprendidas na alcova são a possibilidade de mudar a direção dos caminhos perverter os caminhos que estão começando aos poucos a ganhar força na cabeça de Eugénie: a moralização, o ranço, a sensação de um desejo não cumprido, de uma vida vivida pela metade. A alienação de si, a parca compreensão de si e dos outros; o estranhamento. Todos nós temos pênis e vaginas, assim como temos olhos e mãos. Como é possível viver sem reconhecer-se por inteiro? Daí resultará um meio movimento, meio ser. E a pergunta: o que eu seria se tivesse sido?
   Podemos entender a soberania dos personagens sadianos quando usamos metáforas que nos aproximam mais de sua humanidade: movimento, afeto, calor, são expressões linguísticas que remetem a uma mesma intuição. Deixar ser é deixar florescer, deixar revigorar: fazer filosofia na alcova é como ascender acima das plantas daninhas, que se encontram na escuridão, em antros pouco arejados, e rastejam débeis à procura de um mínimo de ar e alimento. É ir direto ao sol, acima do topo das árvores, afastar tudo aquilo que impede essa saúde, através de um esforço constante de filosofia, amizade… e sexo. É antes de tudo um trabalho, um trabalho de amor.
   Sade põe-se numa posição de polêmica: ele se utiliza de palavras como perversão, maldade, sujeira, para dar uma alfinetada naqueles espíritos nos quais ainda se encontra asco moralista. Seus leitores veem antes a si próprios. Sade soa doentio àqueles que são, eles mesmos, doentios, por força de inércia. Inércia gerada pelas constantes proibições, imposições, culpabilizações, enfim. Mas pode vir a ser um grande remédio, uma nova consciência, um reacender de forças ocultas. Com uma simples leitura.
   Como já foi previsto com essa mera introdução, o filósofo Sade vê no estímulo do corpo nas milhões de formas de estimulá-lo um caminho fértil para se chegar à filosofia. É como se ele soubesse o quanto uma humanidade, por ausência de toque, está embotada em ideias. As ideias filosóficas elas mesmas têm cheiro de antro fechado, os corpos estão em estado de putrefação parcial por serem por tanto tempo ignorados, rechaçados, desdenhados pela religião, pelas ideias em vigor: ideias que querem solidez, querem pureza, querem eternidade. Mas nada no mundo é eterno: tudo corre como um rio, em movimento, tudo alterando, nada sendo o mesmo duas vezes.
   O filósofo da alcova quer incentivar seu leitor a rir de seus demônios. Ao menos quer ensinar seu aprendiz a conversar com eles, experimentá-los. Experimentá-los ao limite, em graus sempre maiores; indo cada vez mais a fundo, experienciando tudo o que, num contexto de opressão, não seria sequer cogitável. Imagine-se um vórtice: tal é o formato de um ânus. Tal é o movimento que Sade quer que façamos em meio às orgias com nossas ideias. Não há distinção entre o corpo e a mente: não há hierarquia antes, há uma hierarquia invertida. Tudo começa no corpo, no gozo, e se ramifica nos pensamentos, como frutos de uma árvore constantemente fertilizada.
   Tudo se transfigura em novas formas quando se tem a coragem, os colhões, para se fazer algo que até então se recriminou unicamente pela força do hábito, ou pelo medo, ou pela ignorância. À mente surgem novas impressões, risos: são máscaras que adotamos, personagens que encenamos. Somos autoritários quando sentimos que são conosco, o somos conosco mesmos: temos essa relação íntima de alienação, enquanto não há um incentivo como o de Saint-Ange e Dolmancé. Acreditamos haver algo a se recriminar em nós por sentirmos afetos que os outros recriminam: não nos vem à mente, ao menos em primeira instância, criticar essa recriminação mesma. Quando jovens demais acabamos crendo na solidez desses preconceitos, não os conectando com as possíveis frustrações e medos daqueles que as propagam: dessa ausência de posicionamento é que surgem todas as loucuras, miragens, sobre punições eternas, culpas que nunca acabam.
   Sade aprecia o deboche. Ele sabe que depois de um tempo um ser humano atormentado tem de decidir se permanecerá nessa situação de miséria ou retornará à superfície alegre e sempre confiante dos acontecimentos do mundo. Ele sabe, igualmente, que há um grande medo da sujeira, que toda moral é medo de se sujar, medo da mistura. Várias filosofias emergentes na época fizeram, também, uma tentativa de esclarecimento para com a mutabilidade dos fenômenos do mundo, Diderot com a sua visão musical sobre o corpo e o mundo, Condillac com seu sensualismo… entre outros. Todos em grande medida utilizando-se de linguagem científica; todos, também em grande medida, retomando conhecimentos antigos, como o hedonismo epicurista, o poema De Rerum Natura, de Lucrécio, sobre a natureza das coisas que introduz a noção de átomo, numa tentativa de explicar o mundo sem quaisquer superstições. Tudo com a intenção de criar movimento e extirpar os medos que tornam impossível a vida humana.
   A filosofia de Sade é uma explosão, pronta a ferir todo aquele que se mostrar ofendido. Uma explosão apenas: nem boa nem má, mas que por certo virá transformar tudo o que tocar. Matando ideias débeis matando os débeis , reflorescendo, revigorando aqueles que ainda têm essa possibilidade. Ou seja, jovens, devassos, prostitutas, outsiders. Um grande esporro de fertilidade. Um ato fálico par excellence.
   Todo praguejar é uma realidade que se mata. É uma possibilidade de vida sacrificada. O tom com que se diz, é um mundo que se abre: ou um mundo que se fecha. A forma como somos, como agimos, o teor de nossos pensares, os encontros a que dizemos sim e os encontros a que dizemos não: tal é a medida de nossa lucidez. Quis-se chegar a Deus: para tal a humanidade europeia optou pela negação de toda e qualquer vivência. Pereceu pela incapacidade em conciliar-se a si e suas ideias puras ao caótico mundo. Por isso criou tantas miragens: não quis abrir mão de sua vontade de unidade, sua vontade de substância, e preferiu perecer: carregando um destino pesado; atribuindo por conta própria o peso à impermanência; para não viver uma vida “sem sentido”.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Uma etiqueta de extremos, ou: uma dieta aos avessos.

É facilmente concebível querer adotar todo um universo sadiano como ética de exceção. Os exageros e as demasias são algo como uma opção dentre outras à conduta que se toma frente a vida e suas imprevisibilidades. Medos e todas as outras infantilidades vão se dissolvendo com o 'passar do tempo' - e inclusas nesse passar estão todas essas leituras pontiagudas e suas releituras benfazejas. É sangria; palavras que doem para em seguida amainarem a pressão de existir entre os arcos de narrativas e nunca dentro deles. Quando dentro se está é embriaguez... É preciso cuidar das ressacas. Tal é a medicina alternativa que me propus hoje; o hiato duma caminhada.

Trecho retirado do livro "Filosofia da Alcova", de Donatien Alphonse François de Sade.

Ou Marquês de Sade.

"SAINT-ANGE - Ouve-me então, Eugénie. É um absurdo dizer que, ao deixar o seio de sua mãe, uma moça deva, a partir de tal momento, tornar-se vítima da vontade dos pais e permanecer assim até o último suspiro. Não é num século em que a extensão e os direitos do homem acabam de ser aprofundados com tanto cuidado, que as jovens devem continuar se achando escravas de suas famílias, quando é constante que os poderes dessas famílias sobre elas são totalmente quiméricos. Ouçamos a natureza sobre um objeto tão interessante, e que as leis dos animais, muito mais próximas dela, nos sirvam um momento de exemplo. Por acaso neles os deveres paternos estendem-se para além das primeiras necessidades físicas? Os frutos do gozo do macho e da fêmea não possuem toda a liberdade possível, todos os seus direitos? A partir do momento em que começam a andar e se alimentar sozinhos, os autores de seus dias não deixam de reconhecê-los? E eles, pensarão dever algo àqueles que lhes deram a vida? Não, sem dúvida. Com que direito os filhos do homem devem submeter-se a outros deveres? E quem funda tais deveres senão a avareza ou a ambição dos pais? Ora, pergunto se é justo que uma garota, que começa a sentir e a raciocinar, se submeta a tais freios. Não é o preconceito apenas que prolonga esses grilhões? Há coisa mais ridícula do que ver uma jovem de quinze ou desesseis anos ardendo de desejos que é obrigada a vencer, esperar, em tormentos piores que os do inferno, que agrade a seus pais, após tornarem sua juventude infeliz, sacrificar também sua maturidade imolando-a à sua pérfida ambição, associando-a, a contragosto, a um esposo que não vale a pena ser amado ou que tem tudo para ser odiado?
Oh, não, não Eugénie, tais laços se dissiparão em breve. É preciso libertar a jovem da casa paterna quando ela atingir a idade da razão. Em seguida, após lhe proporcionarem uma educação nacional, que a deixem senhora, aos quinze anos, de fazer o que bem entender. Ela cairá no vício? O que importa?! Os serviços oferecidos por uma jovem, consentindo em fazer a felicidade de todos os que a procuram, não serão infinitamente mais importantes do que aqueles que ela, isolando-se, possa prestar a seu esposo? O destino da mulher é ser como uma loba e a cadela: pertencer a todos os que a desejarem. É visivelmente ultrajar a destinação que a natureza impôs às mulheres, atando-as pelo laço absurdo de um himeneu solitário.
Esperemos que se abram os olhos, e assegurando a liberdade de todos os indivíduos, não se esqueçam das infelizes moças. Mas se elas são lastimáveis o bastante para serem esquecidas, que elas mesmas se coloquem acima dos costumes e preconceitos, e ousem pisotear os vergonhosos ferros com que se pretende escravizá-las. Assim, poderão triunfar em breve sobre os costumes e a opinião. Tornando-se mais sensato, porque será mais livre, o homem perceberá a injustiça que cometeria desprezando as que agem desse modo, e que a ação de ceder aos impulsos da natureza, considerada um crime junto a um povo cativo, não poderá mais sê-lo junto a um livre.
Portanto, Eugénie, parte da legitimidade desses princípios, e quebra os teus grilhões a qualquer custo que seja; (...). Numa palavra: fode e apenas fode; é para isso que estás no mundo. Não há limites aos teus prazeres senão os de tuas forças ou os de tuas vontades. Não escolhe lugares, tempo ou pessoas: todas as horas, todos os lugares, todos os homens devem servir às tuas volúpias. A continência é uma virtude impossível, cuja natureza, violada em seus direitos, imediatamente nos pune com mil desgraças. Enquanto as leis continuarem sendo o que são, devemos usar certos véus; a opinião obriga-nos a isso. Mas compensemo-nos, em silêncio, dessa cruel castidade que somos forçadas a manter em público.
Que uma moça se empenhe para encontrar uma boa amiga que, livre e na sociedade, possa fazê-la gozar secretamente os prazeres; na falta disso, que ela procure seduzir os Argos que a rodeiam; (...). Que ela jogue poeira nos olhos de todos os que a cercam: irmãos, primos, amigos, parentes; que se entregue a todos, se necessário, para encobrir sua conduta. Que ela até mesmo sacrifique seus gostos, suas afeições, se assim for exigido. Uma intriga que a principio lhe desagrade, a qual só se entregará por política, pode deixá-la mais cedo do que pensa numa situação mais agradável, e ei-la consagrada. Mas que não retorne mais aos preconceitos da infância: ameaças, exortações, deveres, virtudes, religião, conselhos, passando por cima de tudo isso. Que ela rejeite e despreze obstinadamente tudo o que só serve para aprisioná-la de novo, tudo o que, numa palavra, não visa senão mergulhá-la no seio da impudicícia.
É uma extravagância de nossos pais essas predições de infortúnios nos caminhos da libertinagem. Há espinhos por toda parte, mas as rosas estão acima deles na carreira do vício. Somente nas sendas enlameadas da virtude a natureza nunca as fez brotar. O único obstáculo a temer na primeira dessas estradas é a opinião dos homens. Mas qual a moça espirituosa que, após refletir um pouco, não se julgará superior a essa opinião desprezível? Os prazeres recebidos da estima, Eugénie, não passam de prazeres morais, convenientes apenas a certas cabeças. Já os prazeres da fouterie agradam a todos, e seus sedutores atrativos logo compensam esse desprezo ilusório ao qual é difícil escapar quando se enfrenta a opinião pública, mas de que mulheres sensatas zombam a ponto de torná-lo um prazer a mais. Portanto fode, Eugénie; fode, meu anjo. Teu corpo só a ti pertence; só tu no mundo tens o direito de gozar dele e fazer gozar a quem bem quiseres.
Aproveita o tempo mais feliz de tua vida: duram pouquíssimo os anos felizes de nossos prazeres! Se formos bastante afortunados para aproveitá-los, deliciosas recordações nos consolam e até nos divertem na velhice. Perdemo-los?... Amargos pesares, horríveis remorsos dilaceram-nos e se somam aos tormentos da idade para cercar de lágrimas e de espinhos as aproximações funestas do caixão...
Tens a loucura da imortalidade? Então, minha cara, é fodendo que ficarás na memória dos homens. Os Lucrécios foram depressa esquecidos, mas as Teodoras, as Messalinas, são o entretenimento mais doce e frequente da vida. Como, Eugénie, não preferir um partido que, nos coroando de flores cá embaixo, ainda nos deixa a esperança de um culto no além-túmulo? Como não preferir esse partido ao que nos faz vegetar estupidamente na terra e só nos promete esquecimento e desprezo após nossa existência?"

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Perfeição

a perfeição é concisa -
a caça mais preciosa
da razão. preciso é, antes,
paciência: o verso é que
vem, e toma nossa forma;
e mesmo quando vem,
preciso é, antes, saber
deixar-se tomar, liquidar
ah! pesos! liquidar a alma
é dar-lhe uma vez mais
vida, por que não?
quanto de medo há de
dissipar-se nessa dança
que precede toda ânsia
ou toda visão! mas...
tempo ainda é carência,
e o bicho precisa, antes,
aprender o caminhar. dão-
lhe dança! mal lhe
demonstram o rastejar, e já
dão-lhe dança! está agora
embebido em fúria íntima - -
embriagado de miragens!
e assim é que torna-se
perfeição - mal sabendo.

sábado, 4 de novembro de 2017

Pensamentos

A época moderna dita "pós-verdade" e suas idiossincrasias.

Reflexões sobre os personagens de Pais e Filhos, Turguêniev.

Tanto as respostas dos velhos (à ausência de verdade): conservadorismo, pessimismo, resignação, romantismo, "eruditismo"; quanto a dos jovens: niilismo, anarquismo, socialismo, revolução, ciência/positivismo - tanto uma resposta do pensar/da consciência quanto a outra, se diferenciam unicamente pelo seu MOVIMENTO intrínseco. Sua movimentação, sua afetuosidade. Todos os posicionamentos são um modo de tentar responder não negativamente/reativamente - ao tempo (à impermanência). Sāo um primeiro passo do espiritualismo: "traduzir" certas forças individuais ou coletivas, acumuladas pelo processo civilizatório, em cultura, linguagem: é uma questão de NÃO deixar que impulsos, uma vez ativados por algum PATHOS, se choquem contra as próprias paredes - e acabem se voltando sobre si mesmos: o que gera PATOLOGIA. Falar sobre o mundo é falar de si: toda ciência existe (para além da utilidade/praticidade) como reflexão. Pensar e falar no mundo é um caminho de cura de alguma patologia, rancor, ranço: força da inércia (vis inertiae). Tudo é superfície. O universo tem um propósito estético. Toda sensação de imutabilidade, toda procura por essência, fundamento, "arché", é um mal-entendido, um juízo apressado, uma impaciência, um pré-juízo - um prejuizo. Enfim: toda ciência humana é tanto a luta pelo ganho de consciência quanto contra, quando o NARRAR do mundo se cristaliza, endurece, vira VERDADE, autoridade, definição. Esse processo é também a perda da riqueza estética: pois esta é, necessariamente, inconsciência, afeto, calor e movimento. É o aprendizado eterno: de caminhar junto com o tempo cósmico. De não se rebelar infantilmente por haverem forças superiores a nós (tal era a força dos rituais ancestrais a que tivemos o gosto em destruir): e também não querer dominar ou negociar com esse tempo, confundindo toda a crueldade e vontade de subjugação que há dentro de si com o poder do cosmos; mesa farta a que temos acesso apenas quando se amainam nossas soberbas, rancores, arrogâncias e ascos (todo sentimento gerado da impotência). A espiritualização é o corpo digerindo a si, mastigando, engolindo a si mesmo.

Niilismo: reflexões acerca de 'Pais e Filhos'

Bazárov é niilista em todos os sentidos (o que seria o mesmo que dizer que ele é ateísta em todos os sentidos). Esse niilismo de Bazárov pode ser compreendido como a personificaçào, no livro Pais e Filhos, de toda uma geração filha da modernização na Rússia (e em todo o mundo). É válido pesquisar mais profundamente sobre as questões históricas citadas no decorrer do livro, como o ano de 1848. Todavia, vamos, de início, fixar na imagem de Bazárov e na reverberação da sua pessoa e pensamentos numa casa de aristocratas. Bazárov É o herói de uma geração que está conhecendo a rapidez dos motores, o desenvolvimento das indústrias e da  imprensa: e essas questões de ordem geral afetam drásticamente na visão de mundo das pessoas, sejam elas meros civis, sejam cientistas, filósofos, artistas. Essa rapidez de informação é algo como o efeito e a causa de uma indigestão de vida (organica e animicamente falando - tal distinção se não é meramente linguística, são dois modos de se falar do Ser): algo como quis dizer Schopenhauer numa passagem: é como ter uma vida de festas muito seguidas, o que gera desilusão. O niilismo de Bazárov é algo como essa desilusão - e por mais distantes que pareçam as duas gerações, a dos aristocratas e a dos niilistas, elas são SIM crias do mesmo ninho. O romantismo de um, o cristianismo do outro, o idealismo de um outro, deu cria a um niilista.
Dietas não se aplicam apenas ao âmbito da alimentação: tudo o que experimentamos na vida nos define, definirá nossos sins e nossos sins e nossos nãos. O niilismo é a resposta da nova geração aos hábitos viciosos da anterior: à sua crueldade, sua cultura criada a partir de uma inabilidade completa de lidar com a impermanência, a mudança; seu ranço, rancor, ressentimento, sua arrogância: tudo aquilo que é, no limite, profundamente prejudicial a uma juventude que quer um futuro. É o primeiro recurso que os jovens encontraram para que houvesse uma mudança no pensar de uma sociedade: e assim dedicam sua fé ao Nada. Mas mal percebem estes que o seu boicote condena não apenas aquilo que lhes é prejudicial: também escoa ralo abaixo toda a sabedoria que poderia haver nessas gerações passadas, todo instrumento, conhecimento, que pudesse ser de grande valia para se viver uma boa vida. Há pouca reflexão aqui: uma imprudência grande demais, de preços bastante altos. A juventude se deixou levar demais pelo desprezo, e como o desprezo era grande, muito grande, por todos aqueles idealistas, romanticos, eles acabam por cavar a sua própria cova: uma vez que a causa da bancarrota desses mesmos idealistas e romanticos foi especificamente seu desprezo. Desprezo pela vida, pelas dificuldades, pela mediocridade aumentada em muitas vezes sob a ótica do romantismo. Desprezo esse que é a bancarrota dos niilistas, com a diferença de que estes não têm o auxílio da estética: mas somente a deusa Utilidade, irmã da Pressa e da Impaciência. Niilismo é como a ressaca de uma dieta longamente mal administrada. Como o poema de Rilke, "A Canção do Suicida". Essa canção ilustra muito bem a situação de um povo.

Sobre Deus: ou o pai, o marido e o filho.

"Como ele espera que o amem, se ele larga as pessoas com a mesma facilidade com que as aproxima? Num longo período ninguém suportaria estar ao lado de alguém com tão pouca fé e desilusão. É um circo, um circo infeliz, em que as máscaras se tornam cada vez mais esdrúxulas em expressão à medida que o vazio sufocante aumenta. Não há espaço para acreditar, aqui; não há tempo. Há um sufoco, uma necessidade triste, um turbilhão que te engole cada vez que se pensa em ceder... Todos erram, e crer que é possível não errar nunca é o pior de todos os erros. Não aceitar que alguém erre e afastá-la de si por isso é sufocar um pouco mais a si próprio. Não é possível amar num terreno tão seco, tão infértil como esse. Está sendo a pior das experiências: isso de aprender a beber um pouco de cada fonte para não morrer de sede. Será preciso mesmo morrer de sede mais algumas eternidades até aprender a viver? Ou esse é um caminho já muito trilhado, por muitos, e que engana? Tanto faz, só não quero mais morrer de sede! Ser seduzida pelo rancor do ciúmes, pelos pseudo-problemas, e acabar se esquecendo de beber das milhares de colheres que a vida oferece: sufocar tanto ao ponto de já não reconhecer mais uma alegria simples, passar tanta sede tentando sugar a últimíssima gota de uma colher já velha, que sabe-se, mas não se quer admitir, não pode oferecer mais que isso. O corpo, porque precisa tomar, no desespero, toma a si, suga a si, e por mais absurdo, pode-se morrer antes do tempo, bem assim, por uma ideia: uma insistência, uma obstinação de criança."

Fala um personagem muito entediado.