terça-feira, 14 de novembro de 2017

Uma etiqueta de extremos, ou: uma dieta aos avessos.

É facilmente concebível querer adotar todo um universo sadiano como ética de exceção. Os exageros e as demasias são algo como uma opção dentre outras à conduta que se toma frente a vida e suas imprevisibilidades. Medos e todas as outras infantilidades vão se dissolvendo com o 'passar do tempo' - e inclusas nesse passar estão todas essas leituras pontiagudas e suas releituras benfazejas. É sangria; palavras que doem para em seguida amainarem a pressão de existir entre os arcos de narrativas e nunca dentro deles. Quando dentro se está é embriaguez... É preciso cuidar das ressacas. Tal é a medicina alternativa que me propus hoje; o hiato duma caminhada.

Trecho retirado do livro "Filosofia da Alcova", de Donatien Alphonse François de Sade.

Ou Marquês de Sade.

"SAINT-ANGE - Ouve-me então, Eugénie. É um absurdo dizer que, ao deixar o seio de sua mãe, uma moça deva, a partir de tal momento, tornar-se vítima da vontade dos pais e permanecer assim até o último suspiro. Não é num século em que a extensão e os direitos do homem acabam de ser aprofundados com tanto cuidado, que as jovens devem continuar se achando escravas de suas famílias, quando é constante que os poderes dessas famílias sobre elas são totalmente quiméricos. Ouçamos a natureza sobre um objeto tão interessante, e que as leis dos animais, muito mais próximas dela, nos sirvam um momento de exemplo. Por acaso neles os deveres paternos estendem-se para além das primeiras necessidades físicas? Os frutos do gozo do macho e da fêmea não possuem toda a liberdade possível, todos os seus direitos? A partir do momento em que começam a andar e se alimentar sozinhos, os autores de seus dias não deixam de reconhecê-los? E eles, pensarão dever algo àqueles que lhes deram a vida? Não, sem dúvida. Com que direito os filhos do homem devem submeter-se a outros deveres? E quem funda tais deveres senão a avareza ou a ambição dos pais? Ora, pergunto se é justo que uma garota, que começa a sentir e a raciocinar, se submeta a tais freios. Não é o preconceito apenas que prolonga esses grilhões? Há coisa mais ridícula do que ver uma jovem de quinze ou desesseis anos ardendo de desejos que é obrigada a vencer, esperar, em tormentos piores que os do inferno, que agrade a seus pais, após tornarem sua juventude infeliz, sacrificar também sua maturidade imolando-a à sua pérfida ambição, associando-a, a contragosto, a um esposo que não vale a pena ser amado ou que tem tudo para ser odiado?
Oh, não, não Eugénie, tais laços se dissiparão em breve. É preciso libertar a jovem da casa paterna quando ela atingir a idade da razão. Em seguida, após lhe proporcionarem uma educação nacional, que a deixem senhora, aos quinze anos, de fazer o que bem entender. Ela cairá no vício? O que importa?! Os serviços oferecidos por uma jovem, consentindo em fazer a felicidade de todos os que a procuram, não serão infinitamente mais importantes do que aqueles que ela, isolando-se, possa prestar a seu esposo? O destino da mulher é ser como uma loba e a cadela: pertencer a todos os que a desejarem. É visivelmente ultrajar a destinação que a natureza impôs às mulheres, atando-as pelo laço absurdo de um himeneu solitário.
Esperemos que se abram os olhos, e assegurando a liberdade de todos os indivíduos, não se esqueçam das infelizes moças. Mas se elas são lastimáveis o bastante para serem esquecidas, que elas mesmas se coloquem acima dos costumes e preconceitos, e ousem pisotear os vergonhosos ferros com que se pretende escravizá-las. Assim, poderão triunfar em breve sobre os costumes e a opinião. Tornando-se mais sensato, porque será mais livre, o homem perceberá a injustiça que cometeria desprezando as que agem desse modo, e que a ação de ceder aos impulsos da natureza, considerada um crime junto a um povo cativo, não poderá mais sê-lo junto a um livre.
Portanto, Eugénie, parte da legitimidade desses princípios, e quebra os teus grilhões a qualquer custo que seja; (...). Numa palavra: fode e apenas fode; é para isso que estás no mundo. Não há limites aos teus prazeres senão os de tuas forças ou os de tuas vontades. Não escolhe lugares, tempo ou pessoas: todas as horas, todos os lugares, todos os homens devem servir às tuas volúpias. A continência é uma virtude impossível, cuja natureza, violada em seus direitos, imediatamente nos pune com mil desgraças. Enquanto as leis continuarem sendo o que são, devemos usar certos véus; a opinião obriga-nos a isso. Mas compensemo-nos, em silêncio, dessa cruel castidade que somos forçadas a manter em público.
Que uma moça se empenhe para encontrar uma boa amiga que, livre e na sociedade, possa fazê-la gozar secretamente os prazeres; na falta disso, que ela procure seduzir os Argos que a rodeiam; (...). Que ela jogue poeira nos olhos de todos os que a cercam: irmãos, primos, amigos, parentes; que se entregue a todos, se necessário, para encobrir sua conduta. Que ela até mesmo sacrifique seus gostos, suas afeições, se assim for exigido. Uma intriga que a principio lhe desagrade, a qual só se entregará por política, pode deixá-la mais cedo do que pensa numa situação mais agradável, e ei-la consagrada. Mas que não retorne mais aos preconceitos da infância: ameaças, exortações, deveres, virtudes, religião, conselhos, passando por cima de tudo isso. Que ela rejeite e despreze obstinadamente tudo o que só serve para aprisioná-la de novo, tudo o que, numa palavra, não visa senão mergulhá-la no seio da impudicícia.
É uma extravagância de nossos pais essas predições de infortúnios nos caminhos da libertinagem. Há espinhos por toda parte, mas as rosas estão acima deles na carreira do vício. Somente nas sendas enlameadas da virtude a natureza nunca as fez brotar. O único obstáculo a temer na primeira dessas estradas é a opinião dos homens. Mas qual a moça espirituosa que, após refletir um pouco, não se julgará superior a essa opinião desprezível? Os prazeres recebidos da estima, Eugénie, não passam de prazeres morais, convenientes apenas a certas cabeças. Já os prazeres da fouterie agradam a todos, e seus sedutores atrativos logo compensam esse desprezo ilusório ao qual é difícil escapar quando se enfrenta a opinião pública, mas de que mulheres sensatas zombam a ponto de torná-lo um prazer a mais. Portanto fode, Eugénie; fode, meu anjo. Teu corpo só a ti pertence; só tu no mundo tens o direito de gozar dele e fazer gozar a quem bem quiseres.
Aproveita o tempo mais feliz de tua vida: duram pouquíssimo os anos felizes de nossos prazeres! Se formos bastante afortunados para aproveitá-los, deliciosas recordações nos consolam e até nos divertem na velhice. Perdemo-los?... Amargos pesares, horríveis remorsos dilaceram-nos e se somam aos tormentos da idade para cercar de lágrimas e de espinhos as aproximações funestas do caixão...
Tens a loucura da imortalidade? Então, minha cara, é fodendo que ficarás na memória dos homens. Os Lucrécios foram depressa esquecidos, mas as Teodoras, as Messalinas, são o entretenimento mais doce e frequente da vida. Como, Eugénie, não preferir um partido que, nos coroando de flores cá embaixo, ainda nos deixa a esperança de um culto no além-túmulo? Como não preferir esse partido ao que nos faz vegetar estupidamente na terra e só nos promete esquecimento e desprezo após nossa existência?"