sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Breve digressão sobre um filme

     Pergunto-me eu às vezes: a que necessidades humanas vem satisfazer a expressão fílmica? Qual é o valor, para o conhecimento humano, dessa forma artística? O que é que um filme, com a sua narrativa e a sua cadência do narrar, significa para a cognição? Vem o cinema como simples medicação momentânea a um modo estritamente moderno do viver? É ele a janela, que fomos capazes de abrir, de acesso a um tempo inacessível num contexto da vida quotidiana? Digo, num contexto de constante aceleração da vida, em que não há espaço para o fluir espontâneo do existir, fluir esse que transcende as divisões tão constantes às racionalizações, como por exemplo sujeito-objeto? É o cinema essa janela?
     A título de análise filosófica, e com isso intento dizer uma análise que não vem a se restringir a um diagnóstico de psicologia, nem a mera crítica de arte, ou muito menos a questões de técnica. Também não é meu intuito narrar como que biograficamente, ou então contar uma simples história, a história de um filme: não, a nada disso quero restringir-me. - - A título de análise filosófica, propus-me a discorrer, como trabalho para esta matéria, sobre um filme, pelo qual nutro admiração e até mesmo espanto; também ao seu realizador, pela genialidade. Esse é Aguirre, a Cólera dos Deuses, de Werner Herzog.
     Tenho aqui em mãos apenas computador, enquanto a minha mente vai fluindo junto das mãos que teclam estes botões. Pensamento é um modo do agir. É um agir interiorizado. E enquanto isso também vou me nutrindo em intervalos de escrita do filme pretendido. Não é tarefa simples traduzir em devaneio filosófico uma obra cujo modo de expressão nem sequer leva em conta como um dos seus principais meios a palavra.
     Um filme, se pensado como coisa, objeto - e me pergunto ainda se estará certo esse meu modo de me iniciar... - como algo, que tem início e fim, e narra uma história, pressupondo-se que essa é algo que possui limites bem definidos, algo que pode ser medido, calculado, enfim: uma coisa assim não apresenta muito grandes desafios. É algo a ser contado muito rapidamente, como que entre parênteses ou nota de rodapé. Não há grandeza em algo delimitado, circunscrito, fechado, como a mônada o é, um número ou o átomo. Atemporalidade não é algo que ganha importância no universo cinematográfico; antes o oposto. Cinema é como que o "resultado" de um constante modelar do tempo mesmo, sendo assim nada de fechado.
     O fato é que ao ser iniciado um filme se abre como um universo, cheio de caminhos a se percorrer, cheio de infinitas possibilidades. Toda e qualquer tentativa de circunscrição palavrística concerne muito mais às intenções e características do seu autor que à obra de que se está a tratar. O objeto ali é algo de muito distante; o sujeito do conhecer como que dança ao seu redor, monologando, desdobrando a linguagem que ora se apresenta ao seu alcance. Falar de algo imóvel como que parece um tanto mais fácil que de algo cujas principais características é justamente o movimento e o tempo. No entanto a tal facilidade do primeiro também é algo de ilusório, como que o resultado da persuasividade do discurso objetivo. No entanto cá estou eu, numa tarde de feriado, a falar de Aguirre.
     Em Aguirre acompanhamos a expedição liderada por Francisco Pizarro, que embarca numa empreitada, partindo do Peru em direção ao centro da Amazônia, à procura de El Dorado. El Dorado é um mito criado pelos indígenas logo após a bancarrota no Império Inca, como resposta à miséria, indigência, sofrimento, gerados pela destruição de toda uma cultura, e pelo choque desta com uma cultura totalmente diferente e de extremismos colonizatórios nunca por eles antes vistos. Ao que tudo indica, há duas maneiras de se compreender o mito de El Dorado. Há a ideia de que este seria um lugar, como que a expressão de uma utopia, uma idealização, uma miragem, de um lugar perfeito, onde não há sofrimento, e há muito ouro. Mas também podemos entender El Dorado como sendo o mito sobre um homem, que se banhava de ouro, era perfeito em sua constituição, tinha o completo domínio sobre si, e regia a ordem das coisas ao modo de um deus. No filme a expedição está à procura do lugar chamado El Dorado.
     O motivo de eu ter escolhido esse filme, que nem brasileiro é, é pela intuição que me acometeu de haverem muitos pontos em vários instantes que remetem a uma certa universalidade. Estive a remoer tais pontos na minha mente, enquanto fazia as inúmeras atividades do dia-a-dia, como que de modo inconsciente, deixando tais pensamentos virem até mim. Comecei como que tateando o escuro, seguindo apenas meu faro, que me indicava simplesmente que ali, depois de constantemente ruminar, eu haveria de encontrar grandes questões, quase que matemáticas, metafísicas, paradoxais, até mesmo cômicas, dignas de um grande filósofo. Como o foi e ainda é Werner Herzog.
     O filme se introduz com um breve texto, indicando seu miolo, e algumas procedências. Em seguida somos como que jogados a uma perspectiva lá do alto, em meio às nuvens, no topo de uma montanha, na floresta tropical do Peru, acompanhando a expedição peruana com todo o seu pesado aparato de guerra - canhões e todo tipo de armamento, armaduras, etc. -, vestimentas aristocráticas - há até mesmo uma liteira entre eles -, juntamente dos indígenas escravizados: Herzog não nos poupa dos detalhes do tratamento que eles recebem. Há ali algo de bizarro, muito bizarro, acontecendo. O que significa essa procura, uma expedição, uma enorme empreitada humana, que segue com enormes dificuldades seu caminho, quase que não conseguindo, quase que parando, seguindo com todo o seu peso, tanto fisicamente falando quanto culturalmente, à procura de um lugar, que nada mais é que fruto de lendas indígenas, mito que era fruto da indigência gerada do choque de culturas mesmo, da colonização: o que significa essa ânsia por descoberta?
     Conforme vamos acompanhando o grupo de colonizadores em sua empreitada em direção a El Dorado, muitas coisas vão acontecendo ao longo do caminho. Todas as figuras típicas ali se encontram. O padre, que ali se encontra na intenção de levar os evangelhos àqueles que ele mesmo julga bárbaros, desconhecedores de Deus e da verdade. O negro, que é excentricidade, trazido de algures de África para trabalhar nas Américas como escravo, os nobres, cuja fragilidade facilmente se vê, os loucos e ensandecidos conquistadores, cegos pela ânsia mesma da tomada de posse; e por último, e também antes de todos, as mulheres, que antes acompanham seus pais e maridos em suas empreitadas, mas não compartilhando em nada daquele desejo ensandecido. Como que antes já sabendo do destino que lhes espera: ou seja, um fim trágico. Filosoficamente falando a posição das mulheres é extremamente mais filosófica e sábia, essa a de não falar, acompanhar como que dos bastidores, e também o manter-se de mãos limpas ao não se embrenhar nessa tão obscurecedora atitude que é o violentamento e perversão da natureza que toma o nome de conhecimento e vontade de verdade.
     Pensava eu, então, de mim para comigo mesma: que significam exatamente esses seres humanos, com todas suas atitudes, bem específicas atitudes, a embrenhar-se em meio à densa floresta, seguindo o curso do rio, trazendo todo o peso da sua própria cultura pra um meio completamente adverso, enfrentando todo o desconhecido que esse meio possa trazer, um grupo de pessoas à procura de um suposto lugar, El Dorado, que inclusive são eles mesmos julgam ser um lugar, o qual poderia primordialmente ter sido muito bem a idealização de uma pessoa, como um líder mesmo, algo relacionado muito intimamente à cultura indígena local, uma imagem de um homem enviado por algum deus, divinizado de alguma maneira, remetendo sua ideia à luz, ao ouro, sendo ele chamado de "o dourado"? E supondo que o mito tenha surgido justamente da indigência dos ndígenas frente o colapso a sua cultura, o que significam esses europeus a se identificarem ainda mais com o tal mito? O que isso diz deles? Tais eram os maiores questionamentos que me ocupavam, dentre outros que viriam surgindo ao longo do caminho.
     Antes de meros violentadores, são retratados muito humanamente esses conquistadores, com toda a sua vilania. Há entre eles uma enorme discórdia sempre pairando no ar, como que estando eles juntos por mero acaso ou por mera necessidade: cada qual pensa muito mais em si e em suas idealizadas conquistas, que são muito mais delírios e miragens, surgidas em meio à febre, que realidades. Há ali uma ânsia de atemporalidade nunca vista antes. Provavelmente nem sequer entre os indígenas que viram ruir sua cultura.
     Sinto que há naquelas almas grande escuridão. É complicado não cair em clichês nessas coisas quase que religiosas, mas aquela frase de Agostinho, a de que o mal é ausência de luz, cabe aqui perfeitamente. Não há, entre a terra em que os colonizadores pisam, e eles, enraizamento algum. Não houve tempo para que isso acontecesse: e não que não houvesse receptividade, pois ela sempre há. Mas aquele modo de agir perante a realidade, aqueles modos objetivos (só para começar o assunto a história de El Dorado foi compreendida objetivamente por eles), aquelas intenções de descoberta, que é antes um retorno eterno de um encobrimento, um afastamento, um obscurecimento... Aqueles seres, ao acompanharmos o seu trajeto, e ao pensarmos que talvez El Dorado fosse uma pessoa, a idealização de uma pessoa: percebemo-os bem se temos consciência da sua errância. A alma ali foi ludribriada pela promessa de algo impossível, e essa ânsia os faz delirar e andar rumo à escuridão da mata sempre mais, enquanto eles mesmos perambulam por entre a escuridão da sua própria natureza.
     É um estado colérico do ser, como diz o próprio título. Ainda que levassem eles seus corpos junto do trajeto percorrido pelo rio, e se embrenhassem na mata selvagem, nunca seriam eles rio e mata. Nunca porque jamais deixariam aquilo que a eles parecia muito mais valoroso que o rio e a mata: o ideal. Aquilo que lhes fazia vibrar, a promessa. O estado de ânsia do orgânico, como que mal mantendo-se em sua própria natureza, por falta de natureza, mesmo. Falta do ser, da verbalidade e do que a verbalidade significa. São eles descultivos e descultivadores; saindo de suas terras e indo em direção a outras com o discurso de estarem levando o bem, Deus, progresso, ciência. "Nem que pra isso seja preciso dizimar tudo que é humano e não-humano também": tal a natureza que imprime a sua própria condição de descultivo. Condição essa que inclusive os impede de ir mais longe. Mal embrenham-se na floresta e já sofrem eles a imediatidade da força opressora da multiplicidade de vida ali existente. Vemos dissolverem-se Deus, bíblia, propriedade, autoridade, colapsando como que tudo de uma só vez: pois de toda essa antinatureza eram eles próprios constituidos; é a carnalidade da idéia: e eles mal se sustentavam em seus primeiros passos, morrendo logo em seguida. O que subsiste frente toda intempérie é Aguirre, que acredita ser ele mesmo o enviado de um deus colérico para conquistar aquela terra prometida; o delirante Aguirre, que antes de proteger, cuidar e defender tudo aquilo que lidera, deixa tudo ruir, tudo morrer, descuidadamente, tudo ali morrendo pelos seus próprios ideais, os ideais de Aguirre. Como o herói que se sente deus após longa batalha e é mais um perigo à sociedade que algo de vantajoso: esse herói pode matar o que lhe é mais caro, por cegueira de batalha, mesmo, por incapacidade de distinção entre si e deus, por hipertrofia de consciência. A vida humana, se depende de muitas condições específicas para viver, dentre elas certamente está a necessidade em se reiterar de tempos em tempos essa separação. Aguirre subsiste, sim, mas também ele mesmo não é nada, pois que é o herói e a sua guerra senão para defender sua própria cultura, prole, idéia? Já estava ele como que dissolvido em sua própria vaziedade e no desespero dela surgido, e seu fim não foi senão a reiteração dessa mesma condição.
     Era um sonho para eles impossível, de cuja ânsia nem eles mesmos tinham consciência que carregavam: esse de ser rio e mata. Para sonhar esse sono antes era preciso o sono, ou seja, a inconsciência, e que naturezas eram aquelas senão inquietas naturezas, insatisfeitas, grandes insatisfeitas naturezas? Que antinatureza a eles mesmos não soaria essa de reunir contradições como mata e rio, com o ideal de El Dorado... Pois ama-se El Dorado pela sua impossibilidade mesma. É fruto do desprezo dos homens pela temporalidade da vida. O El Dorado dos colonizadores é fruto da miséria que aflora da falta de boa vontade da humanidade para com as suas próprias vidas. E assim esse modo de viver se repete, ou pode vir a se repetir, eternamente retornando, nas mais variadas instâncias humanas, ou seja, em todo lugar onde se conta uma história.